Nelson Mandela governou a África do Sul entre 1994 e 1999 (Shaun Curry/AFP) |
Nelson Mandela, símbolo da luta contra o preconceito e líder que guiou a África do Sul de uma ditadura segregacionista para uma democracia multirracial, morreu nesta quinta-feira aos 95 anos. Figura inspiradora por sua incansável resistência ao regime racista do apartheid, Mandela construiu um dos mais belos capítulos da história do século XX ao se tornar o primeiro presidente eleito democraticamente na África do Sul, depois de passar 27 anos preso por sua oposição à ditadura.
A saúde de Mandela vinha se deteriorando rapidamente nos últimos dois anos, principalmente por causa de uma recorrente infecção pulmonar – resquício de uma tuberculose contraída na prisão. O ex-presidente esteve internado em um hospital de Pretória por quase três meses, entre junho e setembro, respirando com a ajuda de aparelhos.
Fundador da África do Sul moderna, ao comandar o país em seu momento mais crítico – quando as tensões e ressentimentos acumulados após 42 anos de segregação poderiam ter levado brancos e negros para uma guerra civil –, Mandela será lembrado não apenas pelo grande estadista que foi. Sua incrível trajetória de vida, marcada por força de vontade e senso de justiça, o transformou em um ícone universal da luta pela tolerância e contra a desigualdade.
Dias de luta - Reverenciado por líderes de todo o mundo desde sua libertação, o ativista cultivou uma imagem de serenidade em seus últimos anos, evidenciada pelo andar arrastado e o sorriso fácil. Postura bem diferente daquela ostentada no início de sua trajetória política, quando o então jovem líder revolucionário Nelson Rolihlahla Mandela amedrontava as autoridades sul-africanas com discursos inflamados contra o governo. Nascido em 18 de julho de 1918 no vilarejo de Mvezo, no seio da nobreza tribal, Mandela foi o primeiro de sua família a concluir a educação formal. Na juventude, mudou-se para Johanesburgo fugindo de um casamento arranjado e entrou no curso de Direito. Carismático e eloquente, o advogado se associou ao Congresso Nacional Africano (CNA), a principal organização que lutava pelos direitos dos negros no país, e rapidamente ascendeu na hierarquia do grupo.
Dois acontecimentos ajudaram a moldar o Mandela guerrilheiro que acabaria no banco dos réus anos depois. Primeiro, em 1948, o governo liderado pelo Partido Nacional – legenda formada pelos africâneres, os brancos descendentes de colonos europeus – oficializou a segregação racial no país e deu início ao regime do apartheid, categorizando os negros como uma subclasse. O golpe tornou a militância de Mandela mais ativa e o advogado iniciou uma campanha de resistência pacífica ao regime. O segundo evento decisivo na vida do ativista foi o fatídico Massacre de Sharperville, em 1960, quando tropas do governo abriram fogo contra um protesto matando 69 negros. Concluindo que a resistência pacífica seria insuficiente para combater o apartheid, ele passou a coordenar pequenos atentados de sabotagem contra o governo à frente da Lança da Nação, o braço armado do CNA. Perseguido, passou dois anos na clandestinidade até ser capturado.
Falando em defesa própria, usou o julgamento como palanque para expor os fundamentos de sua luta – e começou a ficar conhecido no resto do mundo. "Tenho nutrido o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas possam conviver em harmonia e com igualdade de oportunidades. É um ideal pelo qual espero viver e que espero ver realizado. Mas, meu Senhor, se preciso for, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer", discursou, ciente da possibilidade de ser enviado para a forca.
Cárcere – Mandela escapou da pena de morte, mas acabou condenado à prisão perpétua. Ficou atrás das grades dos 44 aos 72 anos e, durante o período, soube da morte de sua mãe e de seu filho mais velho, mas não foi autorizado a ir aos enterros.
O isolamento no presídio da Ilha de Robben, no entanto, não impediu o crescimento de sua influência e ele se tornou o preso político mais famoso do mundo, atraindo uma atenção indesejada para o que acontecia no país. Seu nome virou uma bandeira mundial da causa pelo fim do apartheid - e, de forma mais universal, pelo fim de qualquer tipo de racismo. Sucessivos governos sul-africanos tentaram transferir o ativista para o exílio para se livrar do "problema", mas ele recusou todas as ofertas e só foi solto quando as pressões internacionais pelo fim do apartheid ficaram insuportáveis.
Líder conciliador – Mandela foi finalmente libertado em 1990, como parte das medidas reformistas do recém-empossado presidente Frederik Willem de Klerk. No dia 11 de fevereiro, uma multidão acompanhou os primeiros passos do ex-prisioneiro 46664 como um homem livre. "Nossa marcha para a liberdade é irreversível. Não devemos permitir que o medo fique em nosso caminho", discursou, cobrando a realização de eleições multirraciais.
Naquele momento, a África do Sul era um país sob tensão. De forma corajosa, De Klerk havia dado o último empurrão necessário para fazer o apartheid, já sufocado pelas sanções estrangeiras e ameaçado por revoltas domésticas, desmoronar. Mas quando o véu da repressão caiu, o que se viu foi uma sociedade dividida entre a enorme e pobre maioria negra e a minoria branca e rica - um lado desconfiado do outro.
Respeitado pelos negros, que o amavam, e pelos brancos, que não o temiam, Mandela foi a peça fundamental no delicado processo de transição. Deixando o revanchismo para trás, o ex-guerrilheiro adotou o discurso da conciliação e operou como interlocutor entre o governo e a população negra, que começava a ganhar os seus direitos civis pela primeira vez.
A atuação conjunta na democratização sul-africana rendeu ao negro Mandela e ao branco De Klerk o prêmio Nobel da Paz em 1993. "Temos a esperança de que, enquanto batalha para se reconstruir, a África do Sul seja um microcosmo do novo mundo que está se esforçando para nascer", afirmou o ex-prisioneiro ao aceitar a honraria, transformando em palavras o otimismo que cercava o renascimento da África do Sul.
Presidência – Nas primeiras eleições livres no país, realizadas em abril de 1994, Mandela derrotou o próprio De Klerk por uma larga margem e foi eleito o primeiro presidente negro da história da África do Sul. Apenas quatro anos depois de sair da cadeia, o ex-advogado assumia o cargo mais importante da nação e enterrava de vez a lógica racista do apartheid. “Nunca, nunca e nunca de novo esta bela terra experimentará a opressão de um sobre o outro”, afirmou ao tomar posse.
Como chefe de Estado, concentrou esforços em prol da reconciliação interna. Entre suas primeiras medidas, cicatrizou as feridas abertas pelos anos de segregação estabelecendo a Comissão da Verdade e Reconciliação, um comitê criado para apurar as atrocidades cometidas durante a vigência do apartheid. Liderada pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu, a Comissão teve o mérito de não se limitar a investigar apenas os crimes dos agentes do regime, mas também aqueles cometidos pelos grupos de oposição.
Em outro exemplo de sua apurada habilidade como estadista, usou a Copa do Mundo de Rúgbi, sediada na África do Sul em 1995, como o pretexto perfeito para unir a nação em torno de um objetivo único. Seu esforço para engajar os negros na torcida por um time que era historicamente ligado à minoria branca foi recompensado com o improvável título do país no evento, vitória que simbolizou o início de uma nova era para a África do Sul.
Ao terminar seu mandato em 1999, Mandela emplacou o sucessor Thabo Mbeki e deixou o mundo da política para finalmente se dedicar à família.
Vida pessoal conturbada - Um capítulo à parte em sua trajetória, a conturbada vida pessoal de Mandela contrasta com sua imagem pública de serenidade e mostra que ele, afinal, também tinha fraquezas humanas.
Enquanto lutava para livrar o país do apartheid, o ativista colecionou casamentos fracassados e um relacionamento distante com os filhos. Em um de seus livros de memórias, confessou ter negligenciado a primeira esposa, Evelyn Mase, com quem foi casado entre 1944 e 1957. "Sempre me incomodou a falsa imagem que projetei no mundo de que era santo. Nunca fui santo", admitiu certa vez em uma carta enviada da prisão para sua segunda mulher, Winnie.
Tão – ou mais – incendiária do que ele, a ativista Winnie foi a grande companheira de militância de Mandela no CNA e o aguardou durante os anos em que esteve preso. O casamento, no entanto, terminou de forma traumática quando as autoridades descobriram que os seguranças pessoais de Winnie, conhecida até então como "a mãe da nação", haviam matado, ainda em 1989, um adolescente negro acusado de ser informante do regime. Além disso, havia outro agravante: a afamada infidelidade dela. Diante dos escândalos e da decepção, Mandela se separou em 1992, após 34 anos de matrimônio. Em 1998, o então presidente se casou pela terceira vez. Vinte e sete anos mais nova do que ele, a moçambicana Graça Machel foi a companheira do líder até seus últimos dias.
Considerado uma figura paterna para os sul-africanos, Mandela teve seis filhos biológicos – quatro com Evelyn e dois com Winnie – mas deixou a desejar no aspecto familiar. O engajamento político e a prisão impediram o líder de desenvolver uma relação afetuosa com os filhos. "Ele nunca estava disponível para nós", lamentou Makaziwe, uma de suas filhas com Evelyn, em uma entrevista para o jornal britânico Daily Mail.
Mandela também foi particularmente afetado por tragédias familiares. Além da morte do primogênito, Madiba, em um acidente de carro na década de 1960, perdeu também uma filha pequena, de apenas nove meses de idade, em 1947. Outro de seus filhos, Makgatho, morreu em 2005, aos 54 anos de idade, vítima da aids. O fato engajou ainda mais Mandela na luta contra a doença, a principal bandeira defendida por ele após deixar o gabinete presidencial.
Aposentadoria - Em 2004, aos 85 anos, o ex-presidente anunciou que iria se retirar da vida pública. Mesmo assim, ajudou a criar em 2007 o grupo The Elders (Os Anciões), organização internacional com o objetivo de debater os problemas globais e que conta com outros ex-governantes de peso entre seus membros, como o brasileiro Fernando Henrique Cardoso e o americano Jimmy Carter.
Seu prestígio ajudou ainda a trazer a Copa do Mundo para a África do Sul em 2010. No evento, Mandela fez uma de suas últimas aparições públicas ao desfilar em um carro elétrico no estádio Soccer City, antes da final da competição. Na ocasião, Madiba foi aplaudido de pé por todos os torcedores, naquele que foi apontado como o momento mais emocionante do Mundial.
Mais do que qualquer homenagem de caráter oficial, cenas espontâneas como as do Soccer City evidenciam por que Mandela era constantemente associado a uma palavra de uso quase sempre injustificado: unanimidade. Apesar de não ser uma personalidade livre de críticas, como ele mesmo fazia questão de frisar, o herói sul-africano tinha uma qualidade rara e universalmente admirável: acreditava no potencial da humanidade para o bem - e nem as décadas de perseguição, torturas e privação de liberdade abalaram essa crença.
"Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor de sua pele, de sua origem ou de sua religião. Para odiar, é preciso aprender. E, se podem aprender a odiar, as pessoas também podem aprender a amar", escreveu ele em uma das passagens mais famosas de seu livro autobiográfico. É uma lição que norteou a vida de Mandela e que ele deixa como legado para as próximas gerações.
Da Redação
com Veja
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Só serão publicado comentários, com identificação não perca seu precioso tempo de comentar sem se identificar!!